
Eu curto Calvin, Mafalda, o Snoopy, Radicci, Hagar O Terrível e o Logan, menino travesso da tira do meu amigo Flavio Soares. Entretanto, com todo o respeito, eu preciso dizer que de longe, muito longe, léguas a fio, o Chico Bento será sempre o meu personagem – a lápis – do coração. Não porque no fundo eu me saiba um matuto como ele, mas porque o Chico é mesmo fantástico. Se você gosta de literatura brasileira, vai ter muito trabalho para encontrar um personagem tão rico e complexo quanto o Chico. Se quiser ir um pouco além da literatura, vai perceber que, como pouquíssimos escritores, estudiosos, artistas e intelectuais lograram fazer, o Chico é um paradoxo da nacionalidade e um paradigma para a crítica da sociedade brasileira. O Chico é tudo isso e mais um pouco. E eu vou, a seguir, tentar explicar porque eu penso isso.
Antes disso, porém, preciso registrar minha felicidade por que meus filhos possam conhecer esse menino de pés descalços, chapéu esbugalhado e sorriso persistente, ainda. Num tempo em que perdemos enorme quantia de tempo com muito entretenimento inexpressivo, o Chico é como um regato intacto no imaginário infantil. O Chico, meus amigos, é fodástico sem ser fodástico, se é que vocês me entendem.
Voltando a linha de continuidade brevemente interrompida, vou começar a tentar explicar o que muito provavelmente você mesmo já começou a perceber por conta própria. Ou então tente lembrar de um personagem (de literatura, de novela, de tirinhas, de piadas, … ) tão consistente quanto o Chico. Um que, pela sua própria identidade e modo de ser, coloque em xeque todo o modo de vida “construido” para a urbanidade brasileira? Conhece algum que, mais que ele, ridicularize o critique o confinamento, a neurose urbana, a doença da pressa irreversível, o emudecimento das relações humanas, a precarização da alimentação, o embrutecimento do lazer e o fetichismo consumista? Nem gaste seu precioso tempo…
Provavelmente, o criador do Chico, o Mauricio de Sousa, possa ser plausivelmente criticado sob muitos aspectos, mas isso, pelo menos aqui, não tem interesse algum. É difícil para muitos estudiosos compreender o universo de produção cultural de um personagem infantil sem que deposite em sua análise os próprios preconceitos. A crítica, de um modo geral, transita alegremente dessa forma. É um dos modus operandi possível. Mas, para mim, o Chico está noutra esfera: na afetiva. O Chico me convence de um modo que muitos argumentos sociologicamente sofisticados simplesmente me enfaram. Além do mais, desprezar um personagem que elabora tantas críticas e fala diretamente ao público infantil é quase um tipo de sordidez, para não ir muito longe. Enfim, cada um lê o que consegue, como diz a lei.
Porque devo ser um sujeito embestado das ideias e quis tirar umas dúvidas, fui pesquisar análises acadêmicas sobre o personagem Chico Bento. Uma das poucas que encontrei foi esse artigo aqui. Estou obrigado a dizer que poucas vezes encontrei uma análise tão friorenta quanto essa. Sei que nunca vou entender o espírito “crítico” que procura descontextualizar completamente a ficção na tentativa de compreendê-la, mas o sujeito aí, a despeito de seus predicados acadêmicos, é daqueles que usa o materialismo dialético até para analisar a aplicação da raiz quadrada. Ou seja, até é tecnicamente competente mas é infinitamente pobre de espírito. Reduz um dos personagens mais simpáticos e complexos das HQs, com intenso conteúdo educativo, ambiental e até mesmo sociológico ao estereótipo do caipira. Pois bem, então vou lhe aplicar do mesmo remédio e dizer que o limite da sua compreensão rançou num ideologismo barato que, se fosse plantado no chão, não nascia nada. Nem areia. Ara sô!